segunda-feira, 27 de maio de 2013

Zero mais zero


Consta que Galeno, o maior médico da Roma antiga, chegou certa vez a uma cidade atingida pela peste, onde foi recebido com grandes esperanças pelos notáveis locais. Que sorte a nossa, pensaram todos – justo nesta hora, eis que nos aparece o grande Galeno, o homem que mais conhece o corpo humano em todo o império e consegue curar as doenças mais infames em circulação por aí. Galeno olhou um pouco à sua volta, pensou por um minuto e deu sua receita para o tratamento da peste: “Vão embora daqui o mais rápido que puderem. Vão para o lugar mais longe possível. Voltem o mais tarde que conseguirem”. Houve um certo desapontamento: mas é só isso que o nosso grande doutor tem para dizer? Sim, era só isso, e Galeno foi o primeiro a aplicar a sua própria terapia: montou no cavalo, saiu a galope e nem olhou para trás. Não há informações mais precisas nessa história, mas uma coisa é certa: ninguém que optou por obedecer à sua prescrição morreu. E não era isso, exatamente, o que esperavam dele?

        O episódio permanece, no anedotário da história, como uma prova de que é perfeitamente possível aproveitar a própria ignorância para obter um benefício importante – importantíssimo, na verdade, para os que salvaram a sua vida seguindo a recomendação recebida. Galeno não tinha a mais remota ideia de como curar a peste, algo que só seria descoberto uns 1.600 anos depois, mais ou menos. Mas sabia algumas coisas interessantes. Sabia, por exemplo, que a doença aparecia numas cidades e não em outras, que permaneciam totalmente imunes à epidemia. Por que? Pergunta inútil, raciocinava ele, já que não havia tempo de ficar fazendo pesquisas científicas quando centenas de pessoas morriam todos os dias nas cidades atingidas pela peste. Sabia, também, que um indivíduo ainda não contaminado permanecia plenamente saudável quando se mudava para algum lugar livre da praga. Não se importava nem um pouco, enfim, em admitir sua ignorância no assunto; ao contrário dos seus colegas, que ficavam receitando remédios absurdos, rezas e mandingas para esconder o fato de que não sabiam nada sobre o tratamento da doença, preferia salvar pela observação lógica aqueles que ainda não estavam condenados.

        Galeno, na escuridão do século II, não sabia muita coisa. Era capaz, entre outras proezas, de desmontar um macaco inteiro numa autópsia e, em seguida, colocar cada peça de volta exatamente no lugar em que estava. Mas dizia que isso lhe ensinava muito sobre macacos, e pouco sobre o homem. Achava, por exemplo, que o sangue se originava no fígado, e tinha dúvidas sobre a disposição dos músculos no corpo humano; hoje, provavelmente, não o deixariam clinicar num posto de saúde do interior do Ceará. Mas Galeno era um ás em servir-se da sua inteligência para vencer a sua ignorância. Ao recusar-se a ficar inventando falsas respostas para questões que desconhecia, e por limitar-se a aplicar ao paciente o que de fato sabia, forçava a si próprio a aprender mais, e a aprender com mais certeza. O resultado é que acabou se tornando um farol para a medicina por mais de 1.000 anos após a sua morte.

        Em muita coisa, no Brasil de hoje, vivemos um momento oposto ao do mundo mental de Galeno – a ignorância serve para derrotar a inteligência.
Grandes vultos do nosso mundo cultural, político, social e outros abarrotam seus sites com cursos, mestrados, pós-graduações e outros feitos d´armas que atribuem a si próprios; infelizmente, não informam o que aprenderam. Sem isso, o que se tem é zero mais zero. No papel o sujeito é um crânio, e se comporta com aquela arrogância que só a falta de mérito pode comprar – mas, na hora de mostrar o que realmente sabe, apresenta um diploma em vez de uma resposta. Em outros casos, vai-se na direção oposta: a ignorância é promovida a virtude, e a falta de estudo vira um certificado de sucesso na vida. Gente desse tipo é convidada a dar aulas ao mundo, aceitar tarefas incompatíveis com os seus conhecimentos e até a receber títulos de doutor honoris causa, aqueles que exigem um chapéu estranho que fica sempre torto na cabeça do homenageado. Um cidadão de mínimo bom-senso, em tal situação, diria: “Muito obrigado, mas não posso aceitar, porque não entendo nada deste assunto. Não há causa para a honoris”.
        Mas quem faria isso? O título, os aplausos de platéias tidas como sofisticadas e a canonização do ignorante valem mais que o mérito. Quanto menos o indivíduo sabe, tanto menos quer saber. Por que haveria de querer? Não se mexe em ignorância que está ganhando.
J.R. Guzzo. Revista Veja, ed. 29.05.13, pg. 142

segunda-feira, 20 de maio de 2013

A sedução da leitura


O prazer de ler é, como alguém já disse, fenômeno parecido como ser inoculado por um vírus. A partir do momento em que isso acontece, não há mais volta. Nunca mais, pelo resto de nossas vidas, conseguiremos ficar sem um livro por perto. Há uma crônica de Luís Fernando Veríssimo em que ele menciona a superioridade do livro sobre a TV. O livro não tem comerciais, não há disputas do controle remoto com os demais familiares. E de madrugada, quando o livro está ficando bom, não somos interrompidos, como acontece na TV, por filmes apresentados dezenas de vezes.
            Quando se pensa na educação para todos, o princípio inclui a alfabetização e o consequente hábito da leitura como meio mais adequado para a socialização do saber e a formação da cidadania. O ato de ler uma simples bula de remédio ou um jornal é um poderoso exercício mental. O importante é contrastar esse estilo de leitura com aquele do livro, pois este tem qualidades sagradas e reverentes tendo suas raízes no “codex” adotado inicialmente pelas comunidades cristãs ligadas à Bíblia. A leitura é um tema que aparece na obra de Rousseau, quando nas primeiras passagens de “Confissões” ele comenta: “não sei como aprendi a ler; lembro-me apenas de minhas primeiras leituras e dos seus efeitos sobre mim: é a partir deste momento que dato, sem interrupção, minha consciência de mim mesmo”.
            Ler toma tempo e tem o poder de nos levar para longe do momento presente. Ele transmite informações para nossas faculdades internas, que nem sempre são processadas com facilidade em nosssa rotina diária, mas nos faz pensar e sempre foi alvo para os que nos querem mais produtivos. Frequentemente se diz que, durante a vida, uma pessoa só pode ler cerca de 5 mil livros. É um número pequeno, tendo em vista a assombrosa quantidade que está disponível para nós. Essa limitação pode levar alguns leitores a acelerarem seu ritmo de leitura para aumentar o número de livros lidos. Com a correria da vida moderna, a pessoa mal tem tempo para esse prazer. O importante é tornar nosso trabalho mais devagar a fim de que possamos aumentar nosso desempenho geral e melhorar nossas habilidades de ler e escrever.
            Uma pesquisa recente publicada na Universidade de Harvard mostrou que há uma crise mundial da leitura, resultante da pressão para sermos mais produtivos. As crianças estão aprendendo a ler mais rápido, saltando a fonética e diagramando frases. Com certeza não lerão os clássicos quando crescerem. A verdade é que o ato de ler estabelece uma relação íntima, física, da qual todos os sentidos participam: os olhos colhendo as palavras na página, os ouvidos ecoando os sons que estão sendo lidos, o nariz inalando o cheiro familiar do papel e o tato acariciando a página áspera ou suave.
            Por outro lado, não nos esqueçamos da importância da releitura. No início de minha atividade docente, época em que dava muitas aulas, mal tinha tempo para ler, tamanho era o sacrifício de preparar aula e corrigir prova. Ao me aposentar, tendo mais tempo, passei a reler alguns livros mal lidos. Hoje, sou adepto do “slow reading”. Ler devagar não significa necessariamente consumir menos palavras por minuto. Ao contrário. Descobrimos novos detalhes, nuances, ironias e suspense. O escritor espanhol Camilo José Cela, considerado o mais importante do neo-realismo de sua terra, sempre dizia que a época mais feliz de sua vida era aquela dedicada à releitura dos clássicos. A verdade é que esta prática proporciona um prazer inigualável, inspirador de maturidade e sem arrependimentos. Ao fazermos uma releitura, não constatamos o suspense da primeira leitura, obviamente, contudo, nos sentimos revigorados e felizes. É como ver filmes e ouvir música mais de uma vez. Reconheçamos, a vida é curta. Vamos aproveitá-la, sentar-nos confortavelmente com o nosso amigo, que nunca se queixa, é um prazer eterno e insubistituível.
Duílio Battistoni Filho é historiador e
membro da Academia Campinense de Letras
e do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas.
Correio Popular, edição de 19/05/2013

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Pensar sem palavras


Muitas e muitas vezes – e por anos sem fim – senti-me inferiorizado pela minha ousadia de escrever. São, na verdade, petulância, arrogância, pretensão, para não dizer que irresponsabilidade. Sócrates foi, certamente, o mais sábio de todos os filósofos e pensadores: nada deixou por escrito. E Jesus Cristo, Buda, também. Todos os que os sucederam ousaram colocar em letras a sabedoria recolhida.
        Então, por que – sabendo dessa minha pretensão – não parei de escrever, ainda escrevo? Por um motivo banal: não sei viver sem escrever, como um vício que se não vence, o ar que se respira. Vou em frente, mas com medo das palavras, com pavor da comunicação equivocada, do pensamento errôneo. As palavras identificam coisas, entes vivos, minerais, sentimentos, sensações, emoções, raciocínios. Ninguém consegue pensar sem palavras. E é essa uma das tantas tragédias de nosso cotidiano, desastre que se acentua e se acelera.

        Uma pesquisa antiga revelou que o brasileiro, no seu dia a dia, usava apenas 80 palavras das milhares que existem no vernáculo. Mas – se se pesquisasse hoje – quantas palavras são usadas para as pessoas expressarem seus pensamentos, sentimentos ou se comunicarem entre si? Temo que seríamos nivelados pela linguagem da internet, que é de uma pobreza dolorosa e atormentadora. Como se pode pensar sem palavras?
        Vivi, no passado, uma experiência dramática e dolorosa. Uma relação de amor, cultivado por décadas, foi trincada por uma única palavra que pronunciei. E a trinca se alargou, abriu fendas, até a construção ruir. Era um diálogo e eu falei para mulher, desconsolada diante de adolescentes: “Não se lamente. O problema é que você não tem talento para dialogar com adolescentes.” O mundo caiu. Ela entrou em desespero, ofendida, machucada, ferida: “Você está dizendo, então, que eu sou incompetente, incapaz, irresponsável?” Tentei dizer que não fora o que eu dissera, que talento nada tinha a ver com o que ela entendia. Todos temos talento para algo, não para tudo. Eu dizia do talento específico de saber dialogar com adolescentes, com jovens. Não adiantou. Ela dizia que eu a chamara de incompetente. E tudo ruiu.
        Quando o Brasil parece, finalmente, despertar para a necessidade vital de valorizar a educação, não consigo apreender como isso será possível se não engravidarmos a infância e a adolescência com palavras, com o sentido delas, o significado, a origem. Devo a um tio meu – cá de Campinas, falecido, João Paz Herrmann, ex-gerente da Usina Ester e pai de deputado também falecido – um dos mais preciosos presentes, que me orientou por toda a vida e que, ainda hoje, é meu companheiro de cotidiano. Eu tinha 10 anos e era sedento por leitura. Um dia, meu tio apareceu em casa com um embrulho, meu presente: era um dicionário, o meu primeiro dicionário. E ele me fez prometer: “Aprenda todo dia, no mínimo, três palavras para você, quando crescer, tentar entender o mundo.”
        As palavras são o nosso pão de cada dia, a comunhão entre as pessoas. No entanto – se equivocadas, se malevolamente usadas, se tolas – se tornam desérticas e desunem. Palavras dão vida, palavras matam. Como, pois, pode haver diálogo sem palavras, sem interlocução? Seria o mesmo que conversa entre surdos-mudos, na qual prevalecem os gestos, grunhidos. E como educar, sem palavras? De que servem professores competentes, capazes, dedicados se os alunos não os entendem já que não sabem das palavras?
        Lecionei em universidade por alguns anos, ainda na década dos 1970. Era prazeroso. Professores e alunos formavam uma juventude sedenta de conhecimento, unidos por anseios da liberdade que nos fora roubada. Havia interlocução, as palavras e os pensamentos cruzavam-se na beleza do duelo intelectual. Lutas políticas me afastaram das salas de aula. No entanto – em vésperas de completar 60 anos de idade – resolvi voltar. Como estudante. Ingressei na Filosofia. E, já nas primeiras aulas, descobri a decadência, o declínio, para não dizer degeneração. Pois o que a universidade ensinava, em Filosofia, eu havia aprendido no colegial dos anos 1950.
        Foi uma experiência difícil. Professores faziam perguntas, querendo respostas. Eu, velhote, me constrangia: se respondesse, passaria por pretensioso e arrogante; se não respondesse, seria confissão de minha ignorância. Passei a fingir que nada ouvia. E, numa das aulas, um dos meus coleguinhas de classe – guitarrista de uma banda, estudante por diversão – perguntou, com a maior seriedade, ao mestre: “Professor. Essa escola platônica de que tanto você fala, como era? Ela tinha lousa, Platão usava giz?” Foi no ano 1998.
        E hoje?
Cecílio Elias Netto é escritor e jornalista. Email: celiato@terra.com.br
Publicado no Correio Popular em 1º de fevereiro de 2013, pg. C2

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Profissão - A escolha



          A todo o momento, todos os dias de nossa vida, em face de circunstâncias, imposições, questionamentos, somos induzidos a escolher caminhos por cujas consequências e responsabilidades responderemos. Escolhas, nós as fazemos quotidianamente, desde as mais simplistas, como o nome de um filho, a opção por um candidato, até as mais sutis, de caráter intimista, existencial e metafísico. Descobrir a profissão é um dos grandes desafios do cidadão que busca o aprimoramento e a realização pessoal. Para isto, tanto a vida como o destino podem pregar-lhe uma série de armadilhas.
          Não precisa ser expert para indicar uma trajetória óbvia para o sucesso: estudar! O estudo ainda é o mágico itinerário que abre portas e limites para o triunfo. Sem dúvida, os bancos escolares nivelam as realidades mais heterogêneas e díspares. O conhecimento acadêmico enseja oportunidades e mercados, a despeito da excessiva disputa e concorrência.
          Não procede, porém, o argumento de que o estudo não seja essencial, citando o exemplo um ex-presidente da República. Isto é um engodo. Não vamos aqui valorizar, superestimar a exceção, que esta é obra do acaso. Deixemo-la de lado por ser um desestímulo aos que creditam o sucesso à força de vontade, abnegação e muito trabalho.
          Hoje, com as divisões, subdivisões e rumos da tecnologia, com profissões muito parecidas umas com as outras, com detalhes e peculiaridades, há um labirinto diante dos que buscam uma alternativa profissional. Às vezes, o cidadão, depois de voltas e reviravoltas, depara-se com um dilema nada fácil de digerir e gerenciar. Constata que, após anos de estudos, investindo as parcas economias de seus pais, varando madrugadas, preparando-se para pesquisar o melhor trabalho, para realizar a melhor prova, eis que chega à desoladora conclusão de que, na verdade, não era a carreira almejada. Há um choque e um conflito interior!
          Mas, perseverante, continua. Pacientemente recomeça seu calvário o que não garante que vá realizar seus verdadeiros propósitos e sonhos. E lá se foram horas, dias, estações de de angústia, exaurindo suas forças em prol da grande conquista que malograda, nunca chega. Há mesmo pessoas que gastam a vida perseguindo afinidades. E morrem sem jamais conseguir o intento. Muito triste!
          Há fatores que desestimulam o entusiasmo pela opção profissional, mormente num mundo capitalista e de disputas acirradas. Às profissões nem sempre lhes é dado o devido valor. Um flanelinha, v.g. (sem qualquer referência pejorativa), pode auferir uma renda superior à de um universitário, apenas por um simples: “vou dar uma olhadinha no seu carro, doutor!...”.
          Diante do quadro, ou você concorda, ou segue seu trajeto com a pulga atrás da orelha, pois não sabe o que pode acontecer com seu carro. Um simples risco na lataria lhe causará sérios danos em seu patrimônio. Refém de um fato inevitável você faz a primeira opção e segue seu roteiro tranquilamente. Em retornando, tira do bolso dois ou cinco reais e, pronto. O crime compensou!
          Nada mal para quem não investiu um centavo em sua formação, vive na informalidade, sequer paga impostos, ou seja, consegue uma economia razoável capaz de gerir sua vida, criar seus filhos e sobreviver... Na relação custo/benefício há um total desestímulo para quem passou o tempo mergulhado em pesquisas e folheando livros.
          Então, pergunto, qual o prêmio, para quem frequenta uma faculdade, faz estágios, mestrado, doutorado, se atualiza, se recicla, não para de estudar, e ostenta uma galeria de belos diplomas e molduras? De que vale tal sacrifício que sequer assegura um salário confortável para sobrevivier com dignidade? É apenas uma reflexão...
          Somos um país de privilégios, imediatismos e contradições. Impotentes, diante de algo que foge ao nosso controle, cedemos, acomodamo-nos e tocamos a vida. Com o tempo, aceitamos que “isto é cultural”, eufemismo para encobrir situações esdrúxulas, contrastes gritantes de uma cultura que privilegia o jeitinho ao invés de valorizar competência e méritos adquiridos.

Luno Volpato, escritor, poeta, membro da Academia Campinense de Letras e mestre em Língua Portuguesa. Publicado no Correio Popular, edição de 14/10/2012.

domingo, 12 de agosto de 2012

A formação de nossos jovens

 

Uma volta atrás

Por que o Brasil não salta a barreira do blá-blá-blá e engrena uma política vencedora de esporte na escola

12 de agosto de 2012
CHRISTIAN CARVALHO CRUZ - O Estado de S.Paulo

Joaquim Carvalho Cruz (sim, só uma coincidência) tinha 21 anos quando, vestindo azul, carregou sua magreza e seu semblante de esforço ao até hoje único ouro olímpico do Brasil em provas de pista no atletismo. Correu a final dos 800 metros rasos dos Jogos de Los Angeles, em 1984, em 1 minuto e 43 segundos, recorde olímpico na ocasião. Lá se vão quase 30 anos. E tanta coisa mudou de lá para cá. A União Soviética, que boicotou aquela Olimpíada, desapareceu. A China ficou só em quarto. O próprio Joaquim, que continua magro, modesto e tímido, já não tem aquela cabeleira toda, ganhou uns fios grisalhos e agora fala com leve sotaque americano - reflexo dos 30 anos nos Estados Unidos, onde estudou, casou, cria seus dois filhos adolescentes, trabalha num centro médico da Marinha americana procurando talentos esportivos entre militares feridos de guerra, treina atletas olímpicos e paraolímpicos do país e, finalmente, onde pensa em maneiras de mudar o Brasil por meio do esporte.


Pupilas. Joaquim Cruz com a americana Alice Schmidt e a saudita Sara Attar, em Londres.

"É incrível que nesses 30 anos quase nada tenha mudado estruturalmente nessa área. Será que nossos dirigentes e políticos ainda não enxergaram que a solução para nossos problemas está no esporte na escola?", ele pergunta retoricamente, porque sabe bem a resposta. "É na escola que formaremos uma base grande da qual será possível tirar muitos campeões." De outro modo, ele lamenta, continuaremos a suspirar por esporádicos heróis como o ginasta Arthur Zanetti, ouro nas argolas em Londres, e os irmãos Falcão do boxe, que treinavam humildemente socando humildes bananeiras num humilde quintal. "A falta de oportunidades para o garoto brasileiro que queira ser esportista me assusta."

Mas Joaquim não fala apenas. Ele também age. Em Brasília, onde mantém um instituto que leva seu nome, acaba de iniciar um processo seletivo para descobrir e formar fundistas capazes de medalhar na Olimpíada de 2020. O Programa Rumo ao Pódio, patrocinado pela multinacional do ramo de embalagens Tetra Pak com R$ 1,4 milhão, recebeu 1.400 inscritos. Depois de uma fina peneira inspirada no modelo de seleção dos Seals americanos, sobrarão 30 jovens de 16 a 20 anos.

Na quinta-feira, Joaquim estava no Estádio Olímpico de Londres quando falou ao Aliás por telefone. Entre uma resposta e outra, dirigia palavras de conforto à corredora americana Alice Schmidt, sua pupila, desclassificada na semifinal dos 800 metros. Ele contou como foi, desta vez nos bastidores, fazer história de novo nos Jogos. Joaquim também era o técnico da atleta saudita Sarah Attar, de 19 anos, que de calça, mangas compridas e lenço na cabeça, foi ovacionada pela plateia mesmo terminado sua prova em último lugar. Pela primeira vez o comitê olímpico saudita permitiu a participação de mulheres nos Jogos. E se até isso mudou...

O que te vem à cabeça quando dirigentes esportivos e políticos dizem que nós seremos top 10 nos Jogos do Rio em 2016?

Bom, essa é a especialidade deles, não é? Falar. Falar qualquer coisa. Mas tudo bem. Falar de objetivos altos não é ruim. Só que já se passaram dois anos desde que o Brasil foi escolhido para sediar a Olimpíada e nada foi feito para mudar o que interessa, o que realmente será capaz de construir uma realidade nova no País, que é o esporte na escola. Será que não enxergam que esse é nosso maior problema? Eu li que dias atrás, aqui em Londres, autoridades brasileiras iniciaram oficialmente a contagem regressiva para os Jogos do Rio. Com relógio e tudo. Só agora?! Essa contagem tinha que ter começado dois anos atrás. Se seis anos já seriam insuficientes para formar um atleta ou mudar a estrutura esportiva do Brasil, quatro anos então... Temos que mexer nesse cenário ONTEM. Os políticos e dirigentes fazem muita política e pouca ação. A hora de falar já passou. Agora é hora de agir.

O dinheiro aumentou. Fala-se em R$ 2 bilhões investidos nos últimos quatro anos. Seria o dobro do ciclo olímpico anterior.

Sim, é verdade. Cresceu o apoio às confederações e ao Comitê Olímpico Brasileiro (COB), que são os responsáveis pela tarefa de possibilitar que os atletas ganhem medalhas. Mas tem um detalhe. Nós não temos esses atletas em quantidade. Temos uns poucos. Sabe por quê? Porque a base de onde se extraem possíveis medalhistas olímpicos é minúscula. Tirando o futebol, o Brasil não é uma mina que jorra atletas de alto desempenho. A falta dessa base é nossa maior deficiência. E a base precisa ser feita na escola. É o caminho mais fácil e promissor, para o esporte e para o País. Nos últimos seis anos, saiu ministro de Esporte, entrou ministro de Esporte. Saiu presidente da República, entrou presidente da República. E mudou o quê? Mas algo ainda pode ser feito.

O quê? De que maneira?

Para o Rio 2016 podemos copiar o exemplo britânico. Eles chamaram um holandês que mandou todo mundo embora e convidou um monte de gente comprovadamente boa, experts, muitos ex-esportistas do mundo todo, para trabalhar basicamente com os atletas já existentes e com potencial. Por meio das loterias, aumentaram os repasses de dinheiro e investiram pesado individualmente nesses atletas. O resultado está aí: a Grã-Bretanha deve terminar em terceiro lugar no quadro de medalhas, sua melhor participação na história da Olimpíada.

Mas esse método não mascara nossa grande deficiência, que é justamente a inexistência de um programa esportivo duradouro e que nos faça crescer como nação? As medalhas olímpicas devem ser o objetivo em si ou a consequência de um trabalho maior?

Você tem razão. A Olimpíada não vai acabar em 2016. E acho que o Brasil também não. Então, não precisamos pensar tão pragmaticamente só para daqui a quatro anos. O correto é aproveitar a grande oportunidade que temos para implantar esse programa mais duradouro junto com a educação, algo de que toda a população vai se beneficiar. Porque está mais do que provado que a prática de esportes melhora as notas dos alunos, afasta os jovens das drogas, da criminalidade, dá oportunidade e por aí vai. Por outro lado, ter a medalha olímpica como objetivo não é ruim. O atleta, o garoto, precisa acreditar que é possível. Parece pouco, mas te asseguro que significa um passo enorme.

Imagino que essa segurança vem da sua própria história...

Sim, da minha vida no esporte. Quando eu tinha 15 anos um americano me deu um par de tênis All Star - eu jogava basquete - e disse que quando eu terminasse a escola em Taguatinga ele me daria uma bolsa para estudar e jogar numa universidade americana. Eu ia duvidar? De jeito nenhum! Eu pensava: "Puxa, se esse cara que nem é meu parente, meu amigo ou meu vizinho vem de outro país e acredita desse jeito em mim, eu devo ser especial... Vou nessa!" Foi assim que me tornei medalhista olímpico, seis anos depois. Então, nós temos que plantar a semente da vitória. A vitória pode ser a medalha olímpica. Mas também é a jornada do garoto atrás dessa medalha. Veja uma coisa. Hoje (quinta-feira) a minha atleta, Alice Schmidt, que eu treinei por sete anos, não se classificou para a final dos 800 metros. Ela deixou a pista chorando, eu a deixei chorar um tempo e então fui conversar. Ela já está no final da carreira, portanto era praticamente a última chance dela em Olimpíada. Perguntei se, apesar do resultado ruim em Londres, ela tinha aprendido algo na trajetória esportiva dela. "Muita coisa, aprendi a viver", ela me respondeu. É isso! A medalha representa o sacrifício, o esforço, é um símbolo importante. Mas, se ela não vem, a jornada tem que ter servido para aprendizados e sentimentos maiores, coisas que você vai carregar pelo resto da vida.

Além da Alice havia outra corredora treinada por você nos 800 metros, a Sarah Attar. Ela chegou em último lugar na eliminatória, 45 segundos atrás da primeira colocada, mas fez história por ser a primeira mulher saudita a disputar uma prova de atletismo nos Jogos. Que tal a experiência?

A Sarah realizou o sonho de muitas mulheres e meninas. Ela permitiu que as novas gerações sonhem. Conheci a Sarah apenas seis semanas atrás, e tenho orgulho dela como se fosse minha filha. Ela é originalmente corredora de maratona. Nasceu nos Estados Unidos e tem dupla cidadania, porque a mãe é americana e o pai, saudita. Treina e estuda em uma universidade da Califórnia. O pai me ligou, explicou a situação. Ela tinha sido convidada pelo COI, não disputou seletiva. Eu topei e pensei: "Meu Deus, preciso montar um programa de trabalho para que essa menina termine a prova sem se machucar". Porque mudar da maratona para os 800 metros não é pouca coisa. Seria o mesmo que pedir pro Usain Bolt correr os 10 mil metros. No fim, foi uma experiência muito legal. A Sarah é supercompetitiva. Estava preocupada, não queria fazer feio. Ficava na internet investigando sobre a pior marca dos 800 metros na história dos Jogos. Aí falei para ela: "Para com isso, Sarah. Você já é uma vencedora olímpica antes de entrar na pista. Quanto mais tempo você levar, melhor para o mundo! Não esquenta com o tempo". Ela curtiu estar ali. Depois da prova veio me dizer que não tinha sentido o próprio corpo durante toda a corrida. Estava consumida pela energia da plateia.

Voltando às ambições brasileiras: como é que se forja uma potência olímpica?

Certamente não é em quatro anos. Tem que dar oportunidade para o garoto praticar esporte na escola, na comunidade dele, e dali você tira os fora de série capazes de competir em alto nível. Qual é nossa realidade hoje? Trinta por cento das escolas públicas brasileiras não têm espaço adequado à prática esportiva. Não estou falando de quadras poliesportivas. Não existe espaço nenhum, nada. São dados de uma pesquisa encomendada pela organização Atletas Pela Cidadania, da qual faço parte junto com Raí, Ana Moser, Magic Paula e uma porção de atletas preocupados com o futuro do País. Hoje acontece o seguinte: o garoto pobre brasileiro vê os grandes heróis olímpicos pela TV, se empolga e sente vontade de imitá-los. Quer correr, nadar, jogar tênis, saltar. Ok, ótimo! Mas onde ele vai praticar? Em clubes? Esquece, a família dele não tem dinheiro para pagar a mensalidade. Quando eu ganhei a medalha de ouro em Los Angeles, meu irmão e meu primo ficaram tão entusiasmados que decidiram correr também. Começaram a correr na rua mesmo, sozinhos, sem instrução, já que não tinha outro jeito. Durou dois dias o entusiasmo deles. E talvez nós tenhamos perdido duas medalhas olímpicas, vai saber... Isso faz quase 30 anos e continua do mesmo jeito. O poder público não pode sonegar essa oportunidade ao garoto. Tem o dever de proporcionar a chance de ele manter o entusiasmo, a chama. E é a escola pública que pode fazer isso, não o clube. Do clube saem os atletas cujas famílias podem bancar o início da jornada dele.

Um modelo perverso que faz o Brasil viver de heróis olímpicos esporádicos, não? Seu caso é uma exceção.

Mais ou menos. Eu tive sorte. Como meu pai era carpinteiro, trabalhava na indústria de construção civil, eu podia frequentar o Sesi (Serviço Social da Indústria) de Taguatinga. Meus amigos da escola ou do bairro não podiam, pois precisava de carteirinha para entrar. Então, aos 7 anos eu fui estudar num local que oferecia também boa estrutura para a prática de esporte. Ali encontrei meu primeiro professor de basquete, que depois descobriu meu talento para o atletismo. Era um lugar onde eu passava a maior parte do meu tempo. No Sesi fui apresentado a educação física, tratamento médico, alimentação correta, vi um dentista pela primeira vez na vida, tomava remédio para matar os bichos da barriga. O Joaquim Cruz campeão olímpico vem daí. Mas e os meus amigos e vizinhos que só tinham a rua?

Por onde você começaria a mudança?

Insisto: na escola. Nos meus tempos de ginásio, nós íamos para a escola de manhã e voltávamos lá à tarde para as aulas de educação física. Hoje a educação física está dentro da grade escolar, antes da aula de matemática e depois da de história. Ou seja, o garoto que é bom em algum esporte, joga um basquetinho ralado na rua dele, não vai poder desenvolver essa aptidão na escola, onde poderia dar a sorte de ter um professor capaz de identificar nele algum potencial. Ao contrário, ele vai ter só os 50 minutos de aula, insuficientes para desenvolver algo consistente ou mostrar seu talento. E assim, o garoto que gosta de jogar na rua continua na rua. Aí ele chega à adolescência, fase da vida em que a gente se junta, faz grupos, turminhas, e em vez de se juntar a um grupo de estudantes atletas como ele, com possibilidade de construir uma vida melhor, ele se junta a grupos destrutivos. Bem, eu acho que o Brasil conhece bem essa história...

Como funciona nos Estados Unidos?

Vou contar a minha experiência para você sentir a diferença. Eu tenho dois filhos, de 18 e 15 anos. Quando o mais velho tinha 4, minha mulher me pediu que eu o colocasse no esporte. "Ok, vou matriculá-lo no futebol." Saí da minha casa, andei mil metros até o centro comunitário do bairro e inscrevi meu garoto nas aulas de futebol. Ali mesmo, no ato da inscrição, me perguntaram se eu gostaria de ser professor voluntário da turma do meu filho. Eu disse que não, pois não tinha experiência. Eu nunca tinha tido um filho! Depois assumi uma turma de basquete. Mas na primeira reunião com as famílias outro pai se prontificou a ficar com as aulas. Ele recebeu as instruções necessárias e foi credenciado pela prefeitura para ser treinador. Como nessa fase é algo bem básico, mais a título de diversão, tudo bem que não seja um especialista. E tudo isso sem custo, muito perto de casa, bem organizado e com boas instalações. O centro comunitário tem ginásio, piscina, quadra de tênis, campo gramado. Sem luxo, mas com o necessário. Cada bairro tem o seu, a 3 ou 4 quilômetros um do outro. O esporte está injetado na cultura americana - e começa quase sempre nesses centros comunitários oferecidos pela prefeitura.

E depois?

Na sequência vem a escola. No primeiro grau o garoto é apresentado a diferentes modalidades, ainda sem competição. No ensino médio ele pode participar de esportes competitivos e escolher: ou faz as aulas de educação física, que são obrigatórias, ou entra para uma equipe que vai competir com outras escolas do bairro, da cidade, do Estado, do país. O poder público dá dinheiro para as escolas manterem essas equipes. Elas são muito tradicionais. E tudo faz parte de um grande sistema gerenciado por uma espécie de federação estadual, sem fins lucrativos, que organiza as competições. Essa federação então trabalha em conjunto com as universidades, que vão recrutar os melhores para serem seus esportistas estudantes. A base, portanto, é muito grande. Encontrar atletas com potencial para o alto rendimento não é procurar agulha no palheiro como no Brasil. Desse sistema americano saem todos os grandes esportistas do país.

Por que é tão difícil estruturar um sistema assim no Brasil?

Porque nossos políticos conversam demais, e só entre eles. Os Atletas pela Cidadania têm um plano pronto, com diversas propostas de ação, entre elas a de que o País invista para levar esporte a todas, TODAS as escolas públicas até 2022. Há quase um ano nós pedimos uma audiência com a presidente Dilma para apresentar esse plano. Estamos esperando.

E por que você insiste, Joaquim? Por que se importa? Por que luta contra uma estrutura que está aí há pelo menos 500 anos?

(Depois de longo silêncio, emocionado) Olha, o meu trabalho como gente, como ser humano, não acabou ainda. Eu nasci com um objetivo. E se isso não for levado para a frente, todo o sacrifício, os treinamentos, as dores, as cirurgias terão sido em vão. (Silêncio de novo.) Existe algo maior do que tudo isso, sabe? Eu acredito que toda criança nasce uma estrela e tem o direito de brilhar. E nós adultos temos a responsabilidade de oferecer oportunidades de ela brilhar. Acho que é isso.

Fonte: estadao.com.br - acesso em 12/08/2012






domingo, 17 de junho de 2012

Degraus de ilusão


Fala-se muito na ascensão das classes menos favorecidas, formando uma “nova classe média”, realizada por degraus que levam a outro patamar social e econômico (cultural, não ouço falar). Em teoria, seria um grande passo para reduzir a catastrófica desigualdade que aqui reina. Porém receio que, do modo como está se realizando, seja uma ilusão que pode acabar em sérios problemas para quem mereceria coisa melhor. Todos desejam uma vida digna para os despossuídos, boa escolaridade para os iletrados, serviços públicos ótimos para a população inteira, isto é, educação, saúde, transporte, energia elétrica, segurança, água, e tudo de que precisam cidadãos decentes.

            Porém, o que vejo são multidões consumindo, estimuladas a consumir como se isso constituísse um bem em si e promovesse real crescimento do país. Compramos com os juros mais altos do mundo, pagamos os impostos mais altos do mundo e temos os serviços (saúde, comunicação, energia, transportes e outros) entre os piores do mundo. Mas palavras de ordem nos impelem a comprar, autoridades nos pedem para consumir, somos convodados a adquirir o supérfluo, até o danoso, como botar mais carros em nossas ruas atravancadas ou em nossas péssimas estradas. Além disso, a inadimplência cresce de maneria preocupante, levando famílias que compraram seu carrinho a não ter como pagar a gasolina para tirar seu novo tesouro do pátio no fim de semana. Tesouro esse que logo vão perder, pois há meses não conseguem pagar as prestações, que ainda se estendem por anos.

            Estamos enforcados em dívidas impagáveis, mas nos convidam a gastar ainda mais, de maneria impiedosa, até cruel. Em lugar de instruírem, esclarecerem, formarem uma opinião sensata e positiva, tomam novas medidas para que  esse consumo insensato continue crescendo – e, como somos alienados e pouco informados, tocamos a comprar.

            Sou de uma classe média em que a gente crescia com quatro ensinamentos básicos: ter seu diploma, ter sua casinha, ter sua poupança e trabalhar firme para manter e, quem sabe, expandir isso. Para garantir uma velhice independente de ajuda de filhos ou de estranhos; para deixar aos filhos algo com que pudessem começar a própria vida com dignidade.

            Tais ensinamentos parecem abolidos, ultrapassadas a prudência e a cautela, pouco estimulados o desejo de crescimento firme e a construção de uma vida mais segura. Pois tudo é uma construção: a vida pessoal, a profissão, os ganhos, as relações de amor e amizade, a família, a velhice (naturalmente tudo isso sujeito a fatalidades como doença e outras, que ninguém controla). Mas, mesmo em tempos de fatalidade, ter um pouco de economia, ter uma casinha, ter um diploma, ter objetivos certamente ajuda a enfrentar seja o que for. Podemos ser derrotados, mas não estaremos jogados na cova dos leões do destino, totalmente desarmados.

            Somos uma sociedade alçada na maré do consumo compulsivo, interessada em “aproveitar a vida”, seja o que isso for, e em adquirir mais e mais coisas, mesmo que inúteis, quando deveríamos estar cuidando, com muito afinco e seriedade, de melhores escolas e universidades, tecnologia mais avançada, transportes muito mais eficientes, saúde excelente, e verdaderiro crescimento do país. Mas corremos atrás de tanta conversa vã, não protegidos, mas embaixo de peneiras com grandes furos, que só um cego ou um grande tolo não vê.

            A mais forte raiz de tantos dos nossos males é a falta de informação e orientação, isto é, de educação. E o melhor remédio é investir fortemente, abundantemente, decididamente, em educação: impossível repetir isso em demasia. Mas não vejo isso como nossa prioridade. Fosse o contrário, estaríamos atentos aos nossos gasto e aquisições, mais interessados num crescimento real e sensato do que em itens desnecessários em tempo de crise. Isso não é subir de classe social: é saracotear diante de uma perigosa ladeira. Não tenho ilusão de que algo mude, mas deixo aqui meu quase solitário (e antiquado) protesto.

Lya Luft. Revista Veja, ed. 2272, 6 de junho de 2012, pg. 30. Escritora e tradutora literária, escreveu muitos livros de sucesso entre romances, poesias, ensaios e histórias para crianças.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Os valores humanos são insubstituíveis

Muito se fala que estamos vivendo na era da tecnologia. O marketing se utilizando de artifícios os mais diversos para tornar as novidades eletrônicas, que surgem em ritmo veloz, atraentes ao usuário.

Uma das ferramentas é envolver as novidades com um glamour característico daquela situação onde quem primeiro possui e utiliza o recurso (mais) moderno, está "por cima"!

Entretanto, existe risco quando esses aparelhos interferem nos valores humanos. Sabemos, por exemplo, que a televisão é fator de isolamento entre as pessoas. Cada família em sua casa, restringindo o antigo hábito de se reunir e conversar com os amigos ao final do dia. Pessoas muitas vezes distantes entre si, dentro da própria casa. O computador também contribui nesse sentido. Uma das consequências é estimular o comportamento individualista.

Não se trata de crítica à modernidade. Muitos de seus efeitos são bons e inquestionáveis. Trata-se, apenas, de cuidar para não se perca a vigilância sobre possíveis excessos, esses sim, prejudiciais aos insubstituíveis valores humanos.

Sobre o tema, veja a seguir o que narrou o médico Tadeu Fernando Fernandes, presidente da Sociedade de Pediatria de Campinas, em recente artigo publicado pelo Correio Popular, edição do dia 6 p.p.

VOZ DO ALÉM

A Pediatria é uma especialidade médica onde o relacionamento do médico com o paciente envolve uma tríplice, às vezes penta ou hexa aliança com pai, mãe, avós, babás e demais cuidadores da criança.

Muitas vezes o diagnóstico não sai do exame clínico ou laboratorial, um olhar, uma palavra, um gesto muitas vezes vale mais que um caminhão de exames.

O atendimento médico como mandam as regras da boa consulta impõe um atendimento humanizado, marcado pelo bom relacionamento pessoal, dedicação, atenção e tempo ao paciente.

Abuso dessa longa introdução, para apresentar ao leitor um caso onde toda essa teoria vira lixo.

Chamo à sala o Gustavo, paciente que acompanho desde o nascimento, hoje com três anos de idade. Aguardo sentado, lendo o histórico do garoto na ficha clínica e nada de entrar o paciente, vou até a porta e vejo no fim do corredor o pai vindo a lentos passos olhando para a tela de um moderno iPad.

E olha que não faltam cartazes educados e polidos lembrando que "ao entrar no consultório desligue o celular", "ele pode atrapalhar a consulta", etc, etc, etc. Besteira! Estou pensando em trocar os cartazes por quadros com pinturas de natureza morta...

Quando finalmente estamos posicionados para iniciar a entrevista com as tradicionais perguntas sobre alimentação, vacinação e demais problemas, escuto uma voz, uma voz feminina, em uma sala onde estavam eu, o pai e o garoto, de onde viria aquela voz?

Do além?

Não do maldito iPad!

O pai do garoto logo explicou:

- Doutor, eu trouxe o Gustavo para consulta, mas não sei responder essas perguntas, "eu sou somente o pai", a mãe é que sabe esses "detalhes", hoje ela tinha uma reunião importante na empresa e não pode vir, mas ela está aqui! Disse apontando para a tela da engenhoca e imediatamente virando-a em minha direção

Lá estava ela, a mãe, ao vivo, em cores, alta definição e com som!

O pai, expert em informática, explicou que estava usando um novo aplicativo "Skype para iPad", que oferece aos usuários o melhor dos dois mundos das chamadas com vídeo: a tela estendida e o display de um computador pessoal, mas com a mobilidade de um telefone celular.

Eu tive um súbito branco cerebral, fiquei olhando para dona Maria na tela do computador, o pai risonho olhando para o meu espanto e o Gustavinho trepado em cima da maca, brincando de pular, cena insólita!

Ela começou a contar que ele não comia nada, nada, nada, estava muito arteiro e à noite não dorme direito, "quer ficar na cama dos pais", a tia da escolinha, que ele frequenta em período integral, está reclamando da agressividade e blá, blá, blá... Como se estivesse ali na minha frente... Aliás, hoje existe uma nova geração de mães, as virtuais, que acompanham tudo do filho pelo Skype, e-mail, vídeos, fotos e pelas câmeras "Big Brother" que todas escolinhas tem como diferencial de marketing e segurança contra acusações inverídicas.

Enfim, eu tive um repente de retardo mental e comecei a interagir com a telinha de nove polegadas, peguntei do cocô, do xixi, etc, e a mãe naturalmente foi respondendo às questões, e o suporte de vídeo, digo, pai, segurando a telinha em minha frente.

Fui examinar a criança e ela (a tela) ficou lá em cima da mesa; palpa, ausculta, otoscopia, etc, e de vez em quando a voz do além perguntava:

- Tudo bem aí doutor? Fale alguma coisa... Por que estão todos quietos?

Finalmente concluímos que o Gustavo estava fisicamente muito bem, psicologicamente não tenho comentários a fazer.

Fiz a receita, pedi os exames que insistentemente a voz do além   solicitava e me despedi do pai com um aperto de mão, do Gustavo dando um palitinho colorido com sabor e da mãe... Xau, t+, vlw, fla kbça.