Muitas e muitas vezes – e por anos sem fim –
senti-me inferiorizado pela minha ousadia de escrever. São, na verdade,
petulância, arrogância, pretensão, para não dizer que irresponsabilidade.
Sócrates foi, certamente, o mais sábio de todos os filósofos e pensadores: nada
deixou por escrito. E Jesus Cristo, Buda, também. Todos os que os sucederam
ousaram colocar em letras a sabedoria recolhida.
Então, por
que – sabendo dessa minha pretensão – não parei de escrever, ainda escrevo? Por
um motivo banal: não sei viver sem escrever, como um vício que se não vence, o
ar que se respira. Vou em frente, mas com medo das palavras, com pavor da
comunicação equivocada, do pensamento errôneo. As palavras identificam coisas,
entes vivos, minerais, sentimentos, sensações, emoções, raciocínios. Ninguém
consegue pensar sem palavras. E é essa uma das tantas tragédias de nosso
cotidiano, desastre que se acentua e se acelera.
Uma
pesquisa antiga revelou que o brasileiro, no seu dia a dia, usava apenas 80
palavras das milhares que existem no vernáculo. Mas – se se pesquisasse hoje –
quantas palavras são usadas para as pessoas expressarem seus pensamentos,
sentimentos ou se comunicarem entre si? Temo que seríamos nivelados pela
linguagem da internet, que é de uma pobreza dolorosa e atormentadora. Como se
pode pensar sem palavras?
Vivi,
no passado, uma experiência dramática e dolorosa. Uma relação de amor,
cultivado por décadas, foi trincada por uma única palavra que pronunciei. E a
trinca se alargou, abriu fendas, até a construção ruir. Era um diálogo e eu
falei para mulher, desconsolada diante de adolescentes: “Não se lamente. O
problema é que você não tem talento para dialogar com adolescentes.” O mundo
caiu. Ela entrou em desespero, ofendida, machucada, ferida: “Você está dizendo,
então, que eu sou incompetente, incapaz, irresponsável?” Tentei dizer que não
fora o que eu dissera, que talento nada tinha a ver com o que ela entendia.
Todos temos talento para algo, não para tudo. Eu dizia do talento específico de
saber dialogar com adolescentes, com jovens. Não adiantou. Ela dizia que eu a
chamara de incompetente. E tudo ruiu.
Quando
o Brasil parece, finalmente, despertar para a necessidade vital de valorizar a
educação, não consigo apreender como isso será possível se não engravidarmos a
infância e a adolescência com palavras, com o sentido delas, o significado, a
origem. Devo a um tio meu – cá de Campinas, falecido, João Paz Herrmann,
ex-gerente da Usina Ester e pai de deputado também falecido – um dos mais
preciosos presentes, que me orientou por toda a vida e que, ainda hoje, é meu
companheiro de cotidiano. Eu tinha 10 anos e era sedento por leitura. Um dia,
meu tio apareceu em casa com um embrulho, meu presente: era um dicionário, o
meu primeiro dicionário. E ele me fez prometer: “Aprenda todo dia, no mínimo,
três palavras para você, quando crescer, tentar entender o mundo.”
As
palavras são o nosso pão de cada dia, a comunhão entre as pessoas. No entanto –
se equivocadas, se malevolamente usadas, se tolas – se tornam desérticas e
desunem. Palavras dão vida, palavras matam. Como, pois, pode haver diálogo sem
palavras, sem interlocução? Seria o mesmo que conversa entre surdos-mudos, na
qual prevalecem os gestos, grunhidos. E como educar, sem palavras? De que
servem professores competentes, capazes, dedicados se os alunos não os entendem
já que não sabem das palavras?
Lecionei
em universidade por alguns anos, ainda na década dos 1970. Era prazeroso.
Professores e alunos formavam uma juventude sedenta de conhecimento, unidos por
anseios da liberdade que nos fora roubada. Havia interlocução, as palavras e os
pensamentos cruzavam-se na beleza do duelo intelectual. Lutas políticas me
afastaram das salas de aula. No entanto – em vésperas de completar 60 anos de
idade – resolvi voltar. Como estudante. Ingressei na Filosofia. E, já nas
primeiras aulas, descobri a decadência, o declínio, para não dizer degeneração.
Pois o que a universidade ensinava, em Filosofia, eu havia aprendido no
colegial dos anos 1950.
Foi
uma experiência difícil. Professores faziam perguntas, querendo respostas. Eu,
velhote, me constrangia: se respondesse, passaria por pretensioso e arrogante;
se não respondesse, seria confissão de minha ignorância. Passei a fingir que
nada ouvia. E, numa das aulas, um dos meus coleguinhas de classe – guitarrista
de uma banda, estudante por diversão – perguntou, com a maior seriedade, ao
mestre: “Professor. Essa escola platônica de que tanto você fala, como era? Ela
tinha lousa, Platão usava giz?” Foi no ano 1998.
E
hoje?
Publicado
no Correio Popular em 1º de fevereiro de 2013, pg. C2
Nenhum comentário:
Postar um comentário