Muito se fala que estamos vivendo na era da tecnologia. O marketing se utilizando de artifícios os mais diversos para tornar as novidades eletrônicas, que surgem em ritmo veloz, atraentes ao usuário.
Uma das ferramentas é envolver as novidades com um glamour característico daquela situação onde quem primeiro possui e utiliza o recurso (mais) moderno, está "por cima"!
Entretanto, existe risco quando esses aparelhos interferem nos valores humanos. Sabemos, por exemplo, que a televisão é fator de isolamento entre as pessoas. Cada família em sua casa, restringindo o antigo hábito de se reunir e conversar com os amigos ao final do dia. Pessoas muitas vezes distantes entre si, dentro da própria casa. O computador também contribui nesse sentido. Uma das consequências é estimular o comportamento individualista.
Não se trata de crítica à modernidade. Muitos de seus efeitos são bons e inquestionáveis. Trata-se, apenas, de cuidar para não se perca a vigilância sobre possíveis excessos, esses sim, prejudiciais aos insubstituíveis valores humanos.
Sobre o tema, veja a seguir o que narrou o médico Tadeu Fernando Fernandes, presidente da Sociedade de Pediatria de Campinas, em recente artigo publicado pelo Correio Popular, edição do dia 6 p.p.
VOZ DO ALÉM
A Pediatria é uma especialidade médica onde o relacionamento do médico com o paciente envolve uma tríplice, às vezes penta ou hexa aliança com pai, mãe, avós, babás e demais cuidadores da criança.
Muitas vezes o diagnóstico não sai do exame clínico ou laboratorial, um olhar, uma palavra, um gesto muitas vezes vale mais que um caminhão de exames.
O atendimento médico como mandam as regras da boa consulta impõe um atendimento humanizado, marcado pelo bom relacionamento pessoal, dedicação, atenção e tempo ao paciente.
Abuso dessa longa introdução, para apresentar ao leitor um caso onde toda essa teoria vira lixo.
Chamo à sala o Gustavo, paciente que acompanho desde o nascimento, hoje com três anos de idade. Aguardo sentado, lendo o histórico do garoto na ficha clínica e nada de entrar o paciente, vou até a porta e vejo no fim do corredor o pai vindo a lentos passos olhando para a tela de um moderno iPad.
E olha que não faltam cartazes educados e polidos lembrando que "ao entrar no consultório desligue o celular", "ele pode atrapalhar a consulta", etc, etc, etc. Besteira! Estou pensando em trocar os cartazes por quadros com pinturas de natureza morta...
Quando finalmente estamos posicionados para iniciar a entrevista com as tradicionais perguntas sobre alimentação, vacinação e demais problemas, escuto uma voz, uma voz feminina, em uma sala onde estavam eu, o pai e o garoto, de onde viria aquela voz?
Do além?
Não do maldito iPad!
O pai do garoto logo explicou:
- Doutor, eu trouxe o Gustavo para consulta, mas não sei responder essas perguntas, "eu sou somente o pai", a mãe é que sabe esses "detalhes", hoje ela tinha uma reunião importante na empresa e não pode vir, mas ela está aqui! Disse apontando para a tela da engenhoca e imediatamente virando-a em minha direção
Lá estava ela, a mãe, ao vivo, em cores, alta definição e com som!
O pai, expert em informática, explicou que estava usando um novo aplicativo "Skype para iPad", que oferece aos usuários o melhor dos dois mundos das chamadas com vídeo: a tela estendida e o display de um computador pessoal, mas com a mobilidade de um telefone celular.
Eu tive um súbito branco cerebral, fiquei olhando para dona Maria na tela do computador, o pai risonho olhando para o meu espanto e o Gustavinho trepado em cima da maca, brincando de pular, cena insólita!
Ela começou a contar que ele não comia nada, nada, nada, estava muito arteiro e à noite não dorme direito, "quer ficar na cama dos pais", a tia da escolinha, que ele frequenta em período integral, está reclamando da agressividade e blá, blá, blá... Como se estivesse ali na minha frente... Aliás, hoje existe uma nova geração de mães, as virtuais, que acompanham tudo do filho pelo Skype, e-mail, vídeos, fotos e pelas câmeras "Big Brother" que todas escolinhas tem como diferencial de marketing e segurança contra acusações inverídicas.
Enfim, eu tive um repente de retardo mental e comecei a interagir com a telinha de nove polegadas, peguntei do cocô, do xixi, etc, e a mãe naturalmente foi respondendo às questões, e o suporte de vídeo, digo, pai, segurando a telinha em minha frente.
Fui examinar a criança e ela (a tela) ficou lá em cima da mesa; palpa, ausculta, otoscopia, etc, e de vez em quando a voz do além perguntava:
- Tudo bem aí doutor? Fale alguma coisa... Por que estão todos quietos?
Finalmente concluímos que o Gustavo estava fisicamente muito bem, psicologicamente não tenho comentários a fazer.
Fiz a receita, pedi os exames que insistentemente a voz do além solicitava e me despedi do pai com um aperto de mão, do Gustavo dando um palitinho colorido com sabor e da mãe... Xau, t+, vlw, fla kbça.
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