Consta que Galeno, o maior
médico da Roma antiga, chegou certa vez a uma cidade atingida pela peste, onde
foi recebido com grandes esperanças pelos notáveis locais. Que sorte a nossa,
pensaram todos – justo nesta hora, eis que nos aparece o grande Galeno, o homem
que mais conhece o corpo humano em todo o império e consegue curar as doenças
mais infames em circulação por aí. Galeno olhou um pouco à sua volta, pensou
por um minuto e deu sua receita para o tratamento da peste: “Vão embora daqui o
mais rápido que puderem. Vão para o lugar mais longe possível. Voltem o mais
tarde que conseguirem”. Houve um certo desapontamento: mas é só isso que o
nosso grande doutor tem para dizer? Sim, era só isso, e Galeno foi o primeiro a
aplicar a sua própria terapia: montou no cavalo, saiu a galope e nem olhou para
trás. Não há informações mais precisas nessa história, mas uma coisa é certa:
ninguém que optou por obedecer à sua prescrição morreu. E não era isso,
exatamente, o que esperavam dele?
O episódio permanece, no anedotário da história, como uma
prova de que é perfeitamente possível aproveitar a própria ignorância para
obter um benefício importante – importantíssimo, na verdade, para os que
salvaram a sua vida seguindo a recomendação recebida. Galeno não tinha a mais
remota ideia de como curar a peste, algo que só seria descoberto uns 1.600 anos
depois, mais ou menos. Mas sabia algumas coisas interessantes. Sabia, por
exemplo, que a doença aparecia numas cidades e não em outras, que permaneciam
totalmente imunes à epidemia. Por que? Pergunta inútil, raciocinava ele, já que
não havia tempo de ficar fazendo pesquisas científicas quando centenas de
pessoas morriam todos os dias nas cidades atingidas pela peste. Sabia, também,
que um indivíduo ainda não contaminado permanecia plenamente saudável quando se
mudava para algum lugar livre da praga. Não se importava nem um pouco, enfim,
em admitir sua ignorância no assunto; ao contrário dos seus colegas, que
ficavam receitando remédios absurdos, rezas e mandingas para esconder o fato de
que não sabiam nada sobre o tratamento da doença, preferia salvar pela
observação lógica aqueles que ainda não estavam condenados.
Galeno, na escuridão do século II, não sabia muita coisa. Era
capaz, entre outras proezas, de desmontar um macaco inteiro numa autópsia e, em
seguida, colocar cada peça de volta exatamente no lugar em que estava. Mas
dizia que isso lhe ensinava muito sobre macacos, e pouco sobre o homem. Achava,
por exemplo, que o sangue se originava no fígado, e tinha dúvidas sobre a
disposição dos músculos no corpo humano; hoje, provavelmente, não o deixariam
clinicar num posto de saúde do interior do Ceará. Mas Galeno era um ás em
servir-se da sua inteligência para vencer a sua ignorância. Ao recusar-se a
ficar inventando falsas respostas para questões que desconhecia, e por
limitar-se a aplicar ao paciente o que de fato sabia, forçava a si próprio a
aprender mais, e a aprender com mais certeza. O resultado é que acabou se
tornando um farol para a medicina por mais de 1.000 anos após a sua morte.
Em
muita coisa, no Brasil de hoje, vivemos um momento oposto ao do mundo mental de
Galeno – a ignorância serve para derrotar a inteligência.
Grandes vultos do nosso mundo
cultural, político, social e outros abarrotam seus sites com cursos, mestrados,
pós-graduações e outros feitos d´armas que atribuem a si próprios;
infelizmente, não informam o que aprenderam. Sem isso, o que se tem é zero mais
zero. No papel o sujeito é um crânio, e se comporta com aquela arrogância que
só a falta de mérito pode comprar – mas, na hora de mostrar o que realmente
sabe, apresenta um diploma em vez de uma resposta. Em outros casos, vai-se na
direção oposta: a ignorância é promovida a virtude, e a falta de estudo vira um
certificado de sucesso na vida. Gente desse tipo é convidada a dar aulas ao
mundo, aceitar tarefas incompatíveis com os seus conhecimentos e até a receber
títulos de doutor honoris causa, aqueles que exigem um chapéu estranho
que fica sempre torto na cabeça do homenageado. Um cidadão de mínimo bom-senso,
em tal situação, diria: “Muito obrigado, mas não posso aceitar, porque não
entendo nada deste assunto. Não há causa para a honoris”.
Mas quem faria isso? O título, os aplausos de platéias tidas
como sofisticadas e a canonização do ignorante valem mais que o mérito. Quanto
menos o indivíduo sabe, tanto menos quer saber. Por que haveria de querer? Não
se mexe em ignorância que está ganhando.
J.R. Guzzo. Revista Veja,
ed. 29.05.13, pg. 142
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