segunda-feira, 27 de maio de 2013

Zero mais zero


Consta que Galeno, o maior médico da Roma antiga, chegou certa vez a uma cidade atingida pela peste, onde foi recebido com grandes esperanças pelos notáveis locais. Que sorte a nossa, pensaram todos – justo nesta hora, eis que nos aparece o grande Galeno, o homem que mais conhece o corpo humano em todo o império e consegue curar as doenças mais infames em circulação por aí. Galeno olhou um pouco à sua volta, pensou por um minuto e deu sua receita para o tratamento da peste: “Vão embora daqui o mais rápido que puderem. Vão para o lugar mais longe possível. Voltem o mais tarde que conseguirem”. Houve um certo desapontamento: mas é só isso que o nosso grande doutor tem para dizer? Sim, era só isso, e Galeno foi o primeiro a aplicar a sua própria terapia: montou no cavalo, saiu a galope e nem olhou para trás. Não há informações mais precisas nessa história, mas uma coisa é certa: ninguém que optou por obedecer à sua prescrição morreu. E não era isso, exatamente, o que esperavam dele?

        O episódio permanece, no anedotário da história, como uma prova de que é perfeitamente possível aproveitar a própria ignorância para obter um benefício importante – importantíssimo, na verdade, para os que salvaram a sua vida seguindo a recomendação recebida. Galeno não tinha a mais remota ideia de como curar a peste, algo que só seria descoberto uns 1.600 anos depois, mais ou menos. Mas sabia algumas coisas interessantes. Sabia, por exemplo, que a doença aparecia numas cidades e não em outras, que permaneciam totalmente imunes à epidemia. Por que? Pergunta inútil, raciocinava ele, já que não havia tempo de ficar fazendo pesquisas científicas quando centenas de pessoas morriam todos os dias nas cidades atingidas pela peste. Sabia, também, que um indivíduo ainda não contaminado permanecia plenamente saudável quando se mudava para algum lugar livre da praga. Não se importava nem um pouco, enfim, em admitir sua ignorância no assunto; ao contrário dos seus colegas, que ficavam receitando remédios absurdos, rezas e mandingas para esconder o fato de que não sabiam nada sobre o tratamento da doença, preferia salvar pela observação lógica aqueles que ainda não estavam condenados.

        Galeno, na escuridão do século II, não sabia muita coisa. Era capaz, entre outras proezas, de desmontar um macaco inteiro numa autópsia e, em seguida, colocar cada peça de volta exatamente no lugar em que estava. Mas dizia que isso lhe ensinava muito sobre macacos, e pouco sobre o homem. Achava, por exemplo, que o sangue se originava no fígado, e tinha dúvidas sobre a disposição dos músculos no corpo humano; hoje, provavelmente, não o deixariam clinicar num posto de saúde do interior do Ceará. Mas Galeno era um ás em servir-se da sua inteligência para vencer a sua ignorância. Ao recusar-se a ficar inventando falsas respostas para questões que desconhecia, e por limitar-se a aplicar ao paciente o que de fato sabia, forçava a si próprio a aprender mais, e a aprender com mais certeza. O resultado é que acabou se tornando um farol para a medicina por mais de 1.000 anos após a sua morte.

        Em muita coisa, no Brasil de hoje, vivemos um momento oposto ao do mundo mental de Galeno – a ignorância serve para derrotar a inteligência.
Grandes vultos do nosso mundo cultural, político, social e outros abarrotam seus sites com cursos, mestrados, pós-graduações e outros feitos d´armas que atribuem a si próprios; infelizmente, não informam o que aprenderam. Sem isso, o que se tem é zero mais zero. No papel o sujeito é um crânio, e se comporta com aquela arrogância que só a falta de mérito pode comprar – mas, na hora de mostrar o que realmente sabe, apresenta um diploma em vez de uma resposta. Em outros casos, vai-se na direção oposta: a ignorância é promovida a virtude, e a falta de estudo vira um certificado de sucesso na vida. Gente desse tipo é convidada a dar aulas ao mundo, aceitar tarefas incompatíveis com os seus conhecimentos e até a receber títulos de doutor honoris causa, aqueles que exigem um chapéu estranho que fica sempre torto na cabeça do homenageado. Um cidadão de mínimo bom-senso, em tal situação, diria: “Muito obrigado, mas não posso aceitar, porque não entendo nada deste assunto. Não há causa para a honoris”.
        Mas quem faria isso? O título, os aplausos de platéias tidas como sofisticadas e a canonização do ignorante valem mais que o mérito. Quanto menos o indivíduo sabe, tanto menos quer saber. Por que haveria de querer? Não se mexe em ignorância que está ganhando.
J.R. Guzzo. Revista Veja, ed. 29.05.13, pg. 142

segunda-feira, 20 de maio de 2013

A sedução da leitura


O prazer de ler é, como alguém já disse, fenômeno parecido como ser inoculado por um vírus. A partir do momento em que isso acontece, não há mais volta. Nunca mais, pelo resto de nossas vidas, conseguiremos ficar sem um livro por perto. Há uma crônica de Luís Fernando Veríssimo em que ele menciona a superioridade do livro sobre a TV. O livro não tem comerciais, não há disputas do controle remoto com os demais familiares. E de madrugada, quando o livro está ficando bom, não somos interrompidos, como acontece na TV, por filmes apresentados dezenas de vezes.
            Quando se pensa na educação para todos, o princípio inclui a alfabetização e o consequente hábito da leitura como meio mais adequado para a socialização do saber e a formação da cidadania. O ato de ler uma simples bula de remédio ou um jornal é um poderoso exercício mental. O importante é contrastar esse estilo de leitura com aquele do livro, pois este tem qualidades sagradas e reverentes tendo suas raízes no “codex” adotado inicialmente pelas comunidades cristãs ligadas à Bíblia. A leitura é um tema que aparece na obra de Rousseau, quando nas primeiras passagens de “Confissões” ele comenta: “não sei como aprendi a ler; lembro-me apenas de minhas primeiras leituras e dos seus efeitos sobre mim: é a partir deste momento que dato, sem interrupção, minha consciência de mim mesmo”.
            Ler toma tempo e tem o poder de nos levar para longe do momento presente. Ele transmite informações para nossas faculdades internas, que nem sempre são processadas com facilidade em nosssa rotina diária, mas nos faz pensar e sempre foi alvo para os que nos querem mais produtivos. Frequentemente se diz que, durante a vida, uma pessoa só pode ler cerca de 5 mil livros. É um número pequeno, tendo em vista a assombrosa quantidade que está disponível para nós. Essa limitação pode levar alguns leitores a acelerarem seu ritmo de leitura para aumentar o número de livros lidos. Com a correria da vida moderna, a pessoa mal tem tempo para esse prazer. O importante é tornar nosso trabalho mais devagar a fim de que possamos aumentar nosso desempenho geral e melhorar nossas habilidades de ler e escrever.
            Uma pesquisa recente publicada na Universidade de Harvard mostrou que há uma crise mundial da leitura, resultante da pressão para sermos mais produtivos. As crianças estão aprendendo a ler mais rápido, saltando a fonética e diagramando frases. Com certeza não lerão os clássicos quando crescerem. A verdade é que o ato de ler estabelece uma relação íntima, física, da qual todos os sentidos participam: os olhos colhendo as palavras na página, os ouvidos ecoando os sons que estão sendo lidos, o nariz inalando o cheiro familiar do papel e o tato acariciando a página áspera ou suave.
            Por outro lado, não nos esqueçamos da importância da releitura. No início de minha atividade docente, época em que dava muitas aulas, mal tinha tempo para ler, tamanho era o sacrifício de preparar aula e corrigir prova. Ao me aposentar, tendo mais tempo, passei a reler alguns livros mal lidos. Hoje, sou adepto do “slow reading”. Ler devagar não significa necessariamente consumir menos palavras por minuto. Ao contrário. Descobrimos novos detalhes, nuances, ironias e suspense. O escritor espanhol Camilo José Cela, considerado o mais importante do neo-realismo de sua terra, sempre dizia que a época mais feliz de sua vida era aquela dedicada à releitura dos clássicos. A verdade é que esta prática proporciona um prazer inigualável, inspirador de maturidade e sem arrependimentos. Ao fazermos uma releitura, não constatamos o suspense da primeira leitura, obviamente, contudo, nos sentimos revigorados e felizes. É como ver filmes e ouvir música mais de uma vez. Reconheçamos, a vida é curta. Vamos aproveitá-la, sentar-nos confortavelmente com o nosso amigo, que nunca se queixa, é um prazer eterno e insubistituível.
Duílio Battistoni Filho é historiador e
membro da Academia Campinense de Letras
e do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas.
Correio Popular, edição de 19/05/2013

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Pensar sem palavras


Muitas e muitas vezes – e por anos sem fim – senti-me inferiorizado pela minha ousadia de escrever. São, na verdade, petulância, arrogância, pretensão, para não dizer que irresponsabilidade. Sócrates foi, certamente, o mais sábio de todos os filósofos e pensadores: nada deixou por escrito. E Jesus Cristo, Buda, também. Todos os que os sucederam ousaram colocar em letras a sabedoria recolhida.
        Então, por que – sabendo dessa minha pretensão – não parei de escrever, ainda escrevo? Por um motivo banal: não sei viver sem escrever, como um vício que se não vence, o ar que se respira. Vou em frente, mas com medo das palavras, com pavor da comunicação equivocada, do pensamento errôneo. As palavras identificam coisas, entes vivos, minerais, sentimentos, sensações, emoções, raciocínios. Ninguém consegue pensar sem palavras. E é essa uma das tantas tragédias de nosso cotidiano, desastre que se acentua e se acelera.

        Uma pesquisa antiga revelou que o brasileiro, no seu dia a dia, usava apenas 80 palavras das milhares que existem no vernáculo. Mas – se se pesquisasse hoje – quantas palavras são usadas para as pessoas expressarem seus pensamentos, sentimentos ou se comunicarem entre si? Temo que seríamos nivelados pela linguagem da internet, que é de uma pobreza dolorosa e atormentadora. Como se pode pensar sem palavras?
        Vivi, no passado, uma experiência dramática e dolorosa. Uma relação de amor, cultivado por décadas, foi trincada por uma única palavra que pronunciei. E a trinca se alargou, abriu fendas, até a construção ruir. Era um diálogo e eu falei para mulher, desconsolada diante de adolescentes: “Não se lamente. O problema é que você não tem talento para dialogar com adolescentes.” O mundo caiu. Ela entrou em desespero, ofendida, machucada, ferida: “Você está dizendo, então, que eu sou incompetente, incapaz, irresponsável?” Tentei dizer que não fora o que eu dissera, que talento nada tinha a ver com o que ela entendia. Todos temos talento para algo, não para tudo. Eu dizia do talento específico de saber dialogar com adolescentes, com jovens. Não adiantou. Ela dizia que eu a chamara de incompetente. E tudo ruiu.
        Quando o Brasil parece, finalmente, despertar para a necessidade vital de valorizar a educação, não consigo apreender como isso será possível se não engravidarmos a infância e a adolescência com palavras, com o sentido delas, o significado, a origem. Devo a um tio meu – cá de Campinas, falecido, João Paz Herrmann, ex-gerente da Usina Ester e pai de deputado também falecido – um dos mais preciosos presentes, que me orientou por toda a vida e que, ainda hoje, é meu companheiro de cotidiano. Eu tinha 10 anos e era sedento por leitura. Um dia, meu tio apareceu em casa com um embrulho, meu presente: era um dicionário, o meu primeiro dicionário. E ele me fez prometer: “Aprenda todo dia, no mínimo, três palavras para você, quando crescer, tentar entender o mundo.”
        As palavras são o nosso pão de cada dia, a comunhão entre as pessoas. No entanto – se equivocadas, se malevolamente usadas, se tolas – se tornam desérticas e desunem. Palavras dão vida, palavras matam. Como, pois, pode haver diálogo sem palavras, sem interlocução? Seria o mesmo que conversa entre surdos-mudos, na qual prevalecem os gestos, grunhidos. E como educar, sem palavras? De que servem professores competentes, capazes, dedicados se os alunos não os entendem já que não sabem das palavras?
        Lecionei em universidade por alguns anos, ainda na década dos 1970. Era prazeroso. Professores e alunos formavam uma juventude sedenta de conhecimento, unidos por anseios da liberdade que nos fora roubada. Havia interlocução, as palavras e os pensamentos cruzavam-se na beleza do duelo intelectual. Lutas políticas me afastaram das salas de aula. No entanto – em vésperas de completar 60 anos de idade – resolvi voltar. Como estudante. Ingressei na Filosofia. E, já nas primeiras aulas, descobri a decadência, o declínio, para não dizer degeneração. Pois o que a universidade ensinava, em Filosofia, eu havia aprendido no colegial dos anos 1950.
        Foi uma experiência difícil. Professores faziam perguntas, querendo respostas. Eu, velhote, me constrangia: se respondesse, passaria por pretensioso e arrogante; se não respondesse, seria confissão de minha ignorância. Passei a fingir que nada ouvia. E, numa das aulas, um dos meus coleguinhas de classe – guitarrista de uma banda, estudante por diversão – perguntou, com a maior seriedade, ao mestre: “Professor. Essa escola platônica de que tanto você fala, como era? Ela tinha lousa, Platão usava giz?” Foi no ano 1998.
        E hoje?
Cecílio Elias Netto é escritor e jornalista. Email: celiato@terra.com.br
Publicado no Correio Popular em 1º de fevereiro de 2013, pg. C2